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E se a mobilidade nunca mais for a mesma?

O confinamento obrigatório durante a pandemia de COVID-19 colocou muitos em teletrabalho. Diversas profissões viram que, afinal, o teletrabalho funciona bastante bem sem prejudicar a eficácia operacional.

Aliás, muitos profissionais poderão ter reparado que algumas das reuniões que tiveram presencialmente no passado, obrigando a deslocações de pessoas de diferentes locais, podiam afinal ter sido realizadas virtualmente.

Várias empresas já fomentavam um culto de teletrabalho cada vez maior e com o confinamento obrigatório aceleraram a sua decisão de inclusivamente não voltar mais a escritórios. Exemplo disso é o Twitter que através da sua directora de recursos humanos comunicou que mesmo que a empresa decida reabrir os seus escritórios, a decisão de voltar ou não pertence aos colaboradores.

Esta decisão mais incisiva não corresponde no entanto à generalidade das empresas, apesar de muitas assumirem que nada será como antes. Por exemplo, Jes Staley CEO do Barclays referiu em entrevista à CNBC que a noção de colocar milhares de pessoas num edifício novamente pode ser uma coisa do passado.

Num estudo mais alargado conduzido pela consultora norte-americana Gartner, cerca de 74% dos responsáveis empresariais pretendem mover alguma parte da sua força laboral para trabalho remoto permanentemente.

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A relação amor-ódio para quem trabalha remotamente

Se o confinamento obrigatório foi bem acolhido por uns, para outros tem sido sofrível. Alguns viram o trabalho a partir de casa reduzir o seu tempo de deslocação diário, reduziram custos com alimentação e transportes, ganharam independência durante o dia e ainda conseguiram aumentar a sua produtividade. Adoram o trabalho remoto e dificilmente pretendem regressar ao trânsito e a um ambiente partilhado.

Outros viram-se confinados a um isolamento muitas vezes sem condições ergonómicas em casa para estarem a trabalhar dias inteiros. Quem tem filhos pequenos simplesmente não tem conseguido trabalhar, ou tem com muito sacrifício. Detestam o trabalho remoto e contam os dias para voltarem a ter a sua rotina diária de volta.

Mas podem estas dificuldades ser ultrapassadas de forma a conjugar com os desejos das empresas e de quem já gosta do trabalho remoto? Podem. E isso vai mudar a mobilidade das pessoas, e o transporte como o conhecemos.

Cidades em transformação

Sempre que vejo referências a programas de cidades inteligentes ou que pareçam ser estruturalmente desafiadores penso que tal realidade será sempre a longo termo. Afinal não se mudam edifícios e cidades inteiras de um dia para o outro. Mas as transformações necessárias para acolher os que não têm condições em casa para trabalhar remotamente podem ser bastante mais céleres.

Alguns empreendimentos já estão a ser planeados e construídos para albergar o conceito de casa e de trabalho no mesmo espaço. Por exemplo, na zona de Caxias está em curso um projecto residencial para edifícios de habitação mas também de escritórios de co-work. Ou seja, ao comprar um apartamento no empreendimento (que é composto por vários edifícios), tem direito a um escritório de cerca de 10m2 num outro edifício. Aliás, todo o empreendimento está projectado para que a envolvência residencial tenha a parte comercial no seu centro, de forma a que qualquer pessoa possa chegar ao seu escritório a partir de casa em menos de 3 minutos a pé.

O mesmo racional pode ser aplicado a zonas já existentes com a conversão de edifícios residenciais em edifícios de escritórios para acomodar os residentes da zona em teletrabalho. Desta forma os “trabalhadores remotos forçados” deste confinamento conseguem o espaço que necessitam para ultrapassar as principais dificuldades sentidas com estar em casa sem ter condições.

O custo de alugar um espaço perto de casa pode ser compensado pela poupança com despesas de deslocação, alimentação, ou mesmo com o tempo ganho.

Portanto, caminhamos para uma realidade de trabalho remoto estando reunidos os desejos quer da parte das empresas quer da parte das pessoas, bem como da viabilidade operacional do trabalho para algumas indústrias.

O transporte de pessoas e mercadorias pode mudar para sempre

Quando pensamos em mais trabalho remoto ocorrem-nos logo as implicações mais imediatas: redução dos picos de trânsito e dos engarrafamentos. Isso é verdade e tem impacto na mobilidade, mas é apenas uma perspectiva. Na perspectiva do transporte profissional de mercadorias podemos observar que: 

  • a redução de viagens casa-trabalho-casa reduz fluxos de tráfego e abre espaço para algumas alterações de rotas. De repente, algumas sequências de entrega que seriam desejáveis mas pouco realistas por causa do trânsito podem passar a ser viáveis;
     
  • a mobilidade dentro das cidades e nos seus acessos fica menos condicionada, as velocidades médias por rota podem aumentar, e com isso realizarem-se mais entregas por volta, ou seja, menor custo por entrega;

  •  a descentralização das pessoas em regiões mais dispersas vai fazer florescer comércio local em várias zonas, principalmente nos ditos “dormitórios”, com densa habitação residencial e pouco espaço comercial. As pessoas terão menos motivos para se deslocarem para irem a cafés, restaurantes, cabeleireiros, supermercados, e outros tipos de comércio de rua que podem beneficiar de ter mais consumidores próximo. Isto significa que estes negócios precisarão de ser suportados por uma rede logística que lhes faça chegar produtos. Portanto é possível que as rotas de entregas passem a ser mais esparsas e menos concentradas nas grandes cidades;
     
  • quem trabalha a partir de casa pode fazê-lo desde um apartamento nos subúrbios de uma grande cidade, ou desde um apartamento ou moradia numa cidade menor e com melhor qualidade de vida. E com as pessoas irá o consumo e a correspondente cadeia de abastecimento. Talvez o Algarve deixe de ser uma zona de picos de abastecimento sazonal, talvez os fluxos de mercadorias de e para a região deixem de ter custos de transporte tão assimétricos;
     
  • acredito que todos continuarão a deslocar-se para fora da sua zona de residência e trabalho, nomeadamente à procura de comércio e serviços que esta não lhes oferece, eventualmente ao fim de cada dia de trabalho ou somente ao fim-de-semana. Provavelmente continuarão a fazê-lo em viatura própria, mas muitos equacionarão continuar a possuir uma. Ou seja, a mobilidade através de plataformas por contratação electrónica, bem como o car sharing, poderá crescer acentuadamente;
     
  • o consumo no lar terá também um acréscimo significativo pelo que o canal HORECA, principalmente no centro das cidades, poderá ser penalizado. Eventualmente o turismo irá ajudar a contrabalançar essa queda para os pontos de venda, mas os distribuidores dos produtos (cafés, sumos, cervejas) verão uma mudança na importância dos seus canais. O canal HORECA poderá mover parte do seu volume do centro das cidades para mais regiões que despontem comércio local, e outra parte irá certamente para o canal de consumo no lar;
     
  • as cadeias de distribuição alimentar continuarão com volumes de expedição elevados. A “anormalidade” que têm vivido durante o período de confinamento não se manterá seguramente, mas permanecerá mais elevada do que anteriormente. No entanto, os consumidores procurarão mais consumo de proximidade do que antes quando faziam compras próximo do trabalho e depois seguiam para casa;
     
  • mesmo após o confinamento obrigatório muitas pessoas continuarão a recorrer ao ecommerce, especialmente o alimentar. Por isso a grande distribuição poderá ter de rever a sua logística de suporte a esta rede com o estabelecimento de mais armazéns de abastecimento exclusivo a este canal;
     

Por fim, a descentralização dos serviços do estado ou a propalada regionalização. Alguns serviços poderão certamente funcionar em regime de trabalho remoto e, por analogia com os tópicos anteriores, as pessoas poderão desempenhá-lo a partir de qualquer parte do país. Assistimos há algum tempo à polémica sobre a mudança do Infarmed de Lisboa para o Porto. Pessoalmente, creio que a mudança deste tipo de instituições por simples decreto não é viável. Quem lá trabalha não pode ser despedido nem movido para uma cidade onde não quer viver. E a instituição não pode morrer e voltar a nascer. Mas se a sua operacionalidade puder ser mantida através do teletrabalho então basta mover o seu centro de decisão e manter as mesmas pessoas.

Possívelmente nada disto acontecerá num curto espaço de tempo, mas estas são algumas das consequências naturais da generalização do teletrabalho no âmbito da mobilidade, e consequentemente da logística e do transporte.


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