O impacto da COVID-19 foi demasiado disruptivo nas famílias, nas empresas e nas escolas para se poder pensar que iremos repor, no período pós-pandemia, a forma de vivência que tínhamos anteriormente. Esperemos que a nova organização da forma de viver das pessoas combine o melhor que tínhamos na pré-pandemia, com o melhor que tivemos durante a pandemia - período onde tudo mudou na nossa forma habitual de viver e nos relacionarmos em sociedade.
Estes períodos de alteração do status quosão sempre fascinantes e de grande instabilidade, mas muito desafiantes para quem se sente a participar num processo de mudança e de construção de uma nova sociedade.
As alterações nos hábitos de mobilidade durante a pandemia, com as pessoas a evitarem os ajuntamentos e, por isso, a evitarem deslocar-se de transporte público, foram sempre vistas como algo temporário e que, uma vez passada a pandemia, se retomava a normalidade e tudo seria como antes. Os volumes de tráfego nas estradas e os números de passageiros em transporte público são sempre apresentados pelas organizações por comparação ao período pré-pandemia admitindo-se que é uma questão de tempo até se repor o que tínhamos antes - os números dos passageiros iriam recuperar e tudo ficaria igual.
E ficaria se o novo normal fosse igual ao antigo normal. Só que durante a pandemia consolidaram-se novas formas de trabalhar, novas formas de comunicar com a família e com os amigos e novas formas de organização da vida, com repercussões ao nível até da localização da habitação, porque o local de trabalho, em muitos casos, deixou de ser um fator condicionante para a escolha do local de residência já que o teletrabalho passou a ser uma opção. Neste contexto, as empresas estão a ter de se ajustar muito rapidamente e a ter de flexibilizar as formas de trabalhar. As empresas que, com o fim do confinamento, quiseram voltar a impor as antigas formas de organização do trabalho (o antigo normal) viram parte da sua mão-de-obra sair porque as pessoas adotaram estilos de vida que não são compatíveis com essa organização do trabalho. As empresas que quiseram impor o teletrabalho (o normal do período pandémico) como a forma de organização do trabalho viram parte da sua mão-de-obra sair porque as pessoas valorizam o contacto social e era no local de trabalho que preenchiam esse vazio. As empresas que melhor se adaptaram foram as que conseguiram perceber que o novo normal não era nem o antigo normal nem o normal pandémico, mas era preciso construir uma nova organização do trabalho com o que de melhor se tinha de cada uma das experiências anteriores. Ora este é o novo normal. E a organização das empresas é agora muito diferente da anterior. Nada será como antes porque mesmo as empresas que não queriam, estão a ter de se adaptar. Podem não ser pró-ativas mas, pelo menos, têm de ser reativas.
O novo normal é profundamente diferente do antigo normal.
E, ao ser diferente, traz consigo alterações muito profundas nas necessidades de mobilidade, porque a procura de transportes é uma procura derivada. Aliás, as cidades, generalizadamente, já estão mais congestionadas, especialmente devido ao alargamento do período de ponta, mas o número dos passageiros em transporte público não recupera para os valores pré-pandémicos. Os sistemas de transporte estão adaptados para o trabalhador padronizado do antigo normal e, agora, os movimentos das pessoas são mais erráticos pelo que a oferta tem de ser mais cadenciada e de maior amplitude temporal. As redes têm de ser muito mais conceptuais e de leitura fácil, apoiadas em sistemas de informação mais claros e em tempo real, porque a nova procura é mais flexível a vários níveis.
O peso da pendularidade reduz, bem como a pressão para a hora de entrada no trabalho e, de um momento para o outro, a hora de ponta da tarde assume, em muitos casos, uma importância superior à hora de ponta da manhã.
O número de deslocações não será necessariamente menor mas muito mais regular durante o dia e dando resposta a necessidades menos estruturadas e com destinos menos rígidos.
Muito está a mudar e vai mudar no curto prazo porque muitas entidades ainda não perceberam que têm de mudar, mas vão ser forçadas a isso. Com esta mudança construiremos no futuro uma organização social que será a conjugação do melhor que tínhamos no antigo normal com o melhor do normal pandémico. A organização da mobilidade vai ter de dar resposta a estas alterações sociais, potenciando cidades mais interessantes do que o foram até agora.
*Artigo originalmente publicado na edição n.º 128 da Eurotransporte