Planeamento Logístico: Em Portugal e no estrangeiro

O que sabemos sobre transporte em Portugal é aplicável e suficiente noutras geografias? Filipe Carvalho, CEO da Wide Scope, explica na primeira pessoa como é preciso planear caso a caso o transporte de mercadorias.

Road train Austrália
Chipre
Zungueiras em Angola (Foto: Cátia Monteiro)
Road train Austrália
Chipre
Zungueiras em Angola
Road train Austrália

Road train Austrália

Ao visitar clientes em vários países não pude deixar de notar que sabia muito pouco sobre o impacto específico a geografia de cada país no planeamento logístico.

Fazendo um exercício simples, se nos transportarmos de Portugal para outro país qualquer (por exemplo, Espanha, França, Itália) a primeira coisa que nos ocorre é a diferença no trânsito. Depois pensamos em legislação específica, por exemplo. No entanto, creio que a nossa mentalidade de país europeu à beira-mar plantado raramente nos leva para além de constrangimentos directos que não são difíceis de imaginar.

O contacto com outras realidades, aquelas que percorro para implementar um sistema de planeamento e optimização de rotas, revela outros constrangimentos mais difíceis de perspectivar. Seguem-se alguns exemplos disso mesmo.

Luanda: As zungueiras e as estradas que desaparecem

Zungueiras em Angola (Foto: Cátia Monteiro)

Pelas ruas de Luanda encontramos vendedoras ambulantes, tipicamente carregando os seus produtos numa bacia sobre a cabeça, deambulando de local para local e vendendo por onde passam. Fazem parte da cultura local, são mulheres que através de muito esforço pessoal lutam para levar para casa o alimento do próprio dia ou dos dias seguintes.

E como é que as zungueiras influenciam o transporte logístico? Enquanto deambulam pelas ruas não têm qualquer interferência, como qualquer outro transeunte. No entanto, quando se estabelecem em grupo, assentando arraiais no chão – muitas vezes em vias de rodagem – é que começam as complicações para o transporte. Com efeito, é comum que junto dos mercados as vias de acesso sejam populadas rapidamente por zungueiras que por ali encontram muitos clientes de passagem, de e para o mercado.

Portanto, se estivermos a planear um transporte para um destinatário no interior de um mercado é preciso ter cuidado com a hora de entrada e de saída do mesmo. Na hora de maior afluência ao mercado há uma forte possibilidade da venda ambulante se estabelecer nas vias de acesso e com isso bloquear quem quer entrar e... quem quer sair. Isso mesmo, pior do que não conseguir entrar é não conseguir sair da zona do mercado. E não vale a pena tentar desbloquear os acessos: no melhor dos cenários o motorista é enxovalhado por estar a incomodar o trabalho de quem está a vender.

Neste sentido, o melhor é planear visitas a mercados garantindo que se entra e sai antes das horas de pico, ou só depois.

Ainda em locais onde a infraestrutura rodoviária é frágil, é comum suspender-se o transporte para determinadas zonas num dia em virtude do que choveu no dia anterior. É muito provável que as estradas simplesmente tenham desaparecido. E assim sendo, não vale a pena tentar aceder onde não se conseguirá transitar.

Road train Austrália

Austrália: As grandes distâncias

A geografia da Austrália é composta pelo desafio de cobrir grandes distâncias. No transporte rodoviário encontramos uma composição que não é habitual em mais geografia nenhuma, os denominados road trains. Um road train tal como numa tradução rudimentar indica é um “comboio de estrada”, que consiste numa unidade de potência (tractor) com três semirreboques longos atrelados. Neste momento está aberta a discussão para se estender a permissão para quatro semirreboques.

Tal composição é impensável nas estradas europeias mas nas estradas desertas e rectilíneas do interior australiano, que ligam cidades separadas por milhares de quilómetros, são extremamente úteis, uma vez que se consegue movimentar a maior quantidade de carga possível. E com mais flexibilidade de destinos e direcções do que a de um transporte ferroviário.

No entanto, este transporte nem sempre é directo entre o ponto de carga e o ponto de descarga. E mesmo que seja, as estradas nas imediações do ponto de carga ou de descarga não são sempre compatíveis com a circulação de um tractor com três semirreboques atrelados. E como é que se conduz um tractor com três semirreboques pelas imediações de um qualquer local de carga?

Curiosamente, não se conduz. Ou melhor, não se conduz com todos os semirreboques atrelados. Caso o local de carga não permita o acesso ao “comboio de estrada” completo é necessário encontrar um ponto fora da localidade onde as composições possam ir sendo atreladas, de preferência com guarda. O tractor movimenta-se entre as composições fora da localidade e o local de carga juntando os vários semirreboques à medida que vão sendo carregados, e arranca em direcção ao seu destino quando completo. Chegado ao local de descarga é possível que o mesmo suceda nas suas imediações ou mesmo que existam vários locais de descarga, eventualmente até ao longo do caminho.

Neste sentido, é conveniente que a atrelagem dos semirreboques tenha sido realizada considerando a ordem de descarga afim de minimizar manobras desnecessárias de realinhamento das composições.

 

Road train Austrália

Chipre: A concorrência numa casca de noz

Chipre é uma ilha relativamente pequena divida entre a parte Cipriota e a parte Turca. O que a torna ainda mais pequena na perspectiva de ser possível atravessá-la por autoestrada de ponta a ponta e regressar durante um dia de trabalho.

Do ponto de vista operacional do transporte isto é simpático. O transporte consegue ser bastante efectivo e eficaz com um bom aproveitamento dos recursos continuamente e até mesmo as estradas são boas e baixamente populadas (pouco trânsito).

Chipre

No entanto, precisamente por ser possível servir qualquer ponto da ilha em qualquer hora do dia as empresas de transporte habituaram os seus clientes a pedidos cada vez mais em cima da hora, ou seja, a pressão que os clientes colocam sobre os transportadores para serem servidos imediatamente é ainda maior do que noutras geografias, nomeadamente as que não são constituídas por ilhas.

Por exemplo, em Portugal é normal que um serviço considerado “Expresso” seja de recolha num dia e de entrega no início do dia seguinte. Também temos entregas no mesmo dia, mas essa não é a exigência nem sequer o hábito da generalidade dos expedidores. Este não é o cenário que encontramos no Chipre. E porque é que poder chegar a qualquer ponto de uma geografia tão facilmente é tão pressionante para o transporte logístico?

Tomemos o exemplo concreto de um cliente do sector da distribuição de peças automóvel multimarca. Quando hoje deixamos o nosso carro particular numa qualquer oficina estamos sensibilizados para o facto de, caso seja necessária uma peça que não esteja disponível em stock na oficina, a reparação só seja concluída no dia seguinte. Porque «temos de mandar vir a peça», dizem-nos.

Os cipriotas não deixam o seu carro de um dia para o outro na oficina, quer estas tenham todas as peças que se venham a revelar necessárias, ou não. Quando uma oficina não tem uma peça disponível contacta não um mas todos os fornecedores de peças automóvel multimarca (para além das marcas) em simultâneo. O primeiro a chegar com a peça fica com o negócio. Portanto, o tempo de reacção e a rapidez de execução quando o distribuidor recebe o pedido da oficina são fundamentais para conseguir o negócio. E é frequente chegar à oficina com a peça solicitada e não vender porque um concorrente se antecipou alguns minutos.

Chipre

É uma pressão quase desonesta que as oficinas colocam, mas foi a competitividade dos distribuidores que a criaram, àvidos por oferecerem tempos de entrega cada vez mais baixos. O nosso cliente, em particular, replaneia todas as suas rotas de distribuição a cada 30 minutos. Conhecer outras realidades de outros países fez-me perceber que as diferenças vão muito para além do transito e das restrições legais.

As condições sociais, demográficas e mesmo de competição entre concorrentes induzidas por uma geografia diferente levam a condicionantes e decisões logísticas específicas com as quais não nos deparamos habitualmente.

 *Texto publicado originalmente na edição 102 da Revista Eurotransporte


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