3 mentiras sobre a UBERização do transporte de mercadorias

Filipe Carvalho, CEO da Wide Scope, - empresa que desenvolve soluções de optimização em áreas como planeamento e sequenciamento de produção, logística e gestão de recursos humanos - explica-nos que mentiras se vêm popularizando no transporte de mercadorias.

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Tabela
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3 Mentiras sobre a Uberização do transporte de mercadorias
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Uber Freight
3 Mentiras sobre a Uberização do transporte de mercadorias

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Com a popularização do fenómeno UBER no transporte de pessoas tem vindo a ser popularizado
também o conceito de empresa “O UBER de ________”(preencha o espaço em branco).

Com efeito, muitos projectos de empreendedorismo recentes não passam de uma réplica do conceito UBER aplicado a uma outra qualquer área de negócio onde a ligação directa entre produtor e consumidor, através de uma plataforma electrónica, fazem a base do negócio. Se no transporte de pessoas se tem revelado um modelo de negócio disruptivo, mesmo apesar de todas as questões legais e sociais a que tem sido associado, o que esperar de um tal serviço no transporte de mercadorias?

camiões

O crescente investimento em startups do género
Ao longo dos últimos dois anos muitas startups têm surgido procurando implementar este conceito no transporte de mercadorias, incluindo a própria UBER com os serviços UBER Eats e UBER Freight. Estas startups beneficiam de amplo financiamento de investidores de venture capital. No site que compila investimentos de venture capital em empresas, CrunchBase, podemos observar as startups – essencialmente norte-americanas – que têm recebido financiamento deste tipo, como ilustrado na tabela. Num global de cerca de 500 milhões de Euros dedicados, nos últimos dois anos, ao investimento em startups de «UBERização» do transporte de distribuição capilar (dito de «last-mile») e mais de 150 milhões em startups relaciona-das com o transporte de longo curso.

Tabela

Tudo em soluções baseadas em tecnologia. As startups que promovem a «Uberização» do transporte de mercadorias apresentam vários argumentos dos quais temos boas razões para desconfiar.

Uber Freight

Mentira 1
A «Economia da partilha» permite acesso aos preços mais competitivos do mercado

Avaliar os preços de um negócio assente em injecções de capital é muito subjectivo. É muito difícil traçar a linha que separa um preço estabelecido em função da real eficácia de uma estrutura de custos baixa, de um preço que é baixo porque é suportado em investimento exterior para obter penetração de mercado e combater a concorrência estabelecida. Mas vamos assumir que tal não se coloca.

Comecemos por observar as características do transporte de distribuição capilar assente num modelo «Uber». Podemos, por exemplo, considerar um serviço de entregas de comida pronta, ou um qualquer outro em que existe a necessidade de transportar algo num curto período de tempo, digamos uma a duas horas.

Considerar que um volume grande de serviços deste tipo é sinónimo de rentabilidade do transporte não podia ser mais enganador. A verdadeira rentabilidade no transporte capilar advém da densidade dos pontos a visitar, ou seja, de quantos quilómetros é necessário percorrer entre cada duas visitas. Quanto menos, melhor. Não advém necessariamente de serviços que – mesmo que sejam muitos – podem obrigar a percorrer distâncias consideráveis entre cada dois pontos, nomeadamente quando são serviços de recolha com entrega imediatamente subsequente e em que não é possível tentar tirar maior partido da viagem.

De facto, este tipo de serviço até pode ser bastante mais oneroso porque as janelas horárias para a sua execução são muito estritas. Os consumidores querem os produtos entregues em casa, no momento, e de preferência grátis. E isso não é compatível com uma actividade que é tão mais eficiente quanto mais serviços conseguir consolidar numa mesma rota, com tanta densidade quanto possível. Para o fazer é necessária liberdade no estabelecimento das sequências de visitas, e tal é antagónico com a volatilidade da procura.

Por outro lado, se o transporte de pessoas num serviço tipo táxi é rentável, então, porque não será igualmente rentável um serviço em que em vez de se transportarem pessoas se transportam pequenos volumes?

Porque ao invés das pessoas, os volumes podem amontoar-se na bagageira de uma carrinha. Ou seja, enquanto no transporte de pessoas fazemos um só serviço por viagem, no transporte de mercadorias, apesar de também o podermos fazer, existe uma forma muito superior que consiste em fazer muitos serviços ao longo de uma mesma viagem. E esses serviços advêm da consolidação de muitos pedidos agregados previamente e ao longo de algum tempo.

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Mentira 2
A qualidade é garantida porque os transportadores são avaliados e a sua reputação é conhecida O transporte de mercadorias é baseado essencialmente em relações de confiança entre um expedidor e um transportador. Enquanto que o transporte de passageiros pode ser visto com uma comodidade, o transporte de mercadorias exige regularmente preocupações adicionais.

Por exemplo, se o produto deve ser acondicionado em frio ou não, se requer uma plataforma elevatória para ser entregue no destino, se tem dimensões compatíveis com a viatura, se é um material perigoso, se é liquido, etc..

Se um transportador foi muito bem avaliado anonimamente no transporte de um artigo no passado isso só por si quer dizer muito pouco para o transporte dos meus artigos para os meus clientes, porque estes podem ter especificidades e desafios a que o transportador ainda não foi exposto.

Por isso se constroem relações de confiança entre expedidores e transportadores ao longo do tempo e com um volume em crescendo de negócios entre ambos. Poderá isto ser compatível com um serviço onde essa relação se baseia em avaliações de serviços passados por outros cuja actividade eu desconheço? Talvez sim, para o transporte de alguns tipos de artigos mas seguramente não será facilmente generalizável. Também porque o transporte em distribuição capilar é baseado em relações de confiança, os expedidores preferem alocar serviço em contratos de longa duração aos seus transportadores. E os transportadores também preferem ocupar os seus recursos numa destas relações estáveis e sólidas.

Uber truck

Portanto, se assim é, o que sobra no mercado disponível para o transporte «UBERizado»? Em primeiro lugar, sobram os serviços esporádicos ou «fora do formato» que não couberam ou não tiveram expressão para serem incorporados num contrato de longo termo. E, portanto, não serão os mais desejáveis para realizar, aliás, muito provavelmente até serão dos mais exigentes, desafiantes e arriscados.

Por outro lado, sobram os transportes que não foram alocados para nenhum contrato de longa duração ou que vão sendo usados pelo meio do que a exigência de um tal contrato permite.

Ou seja, os carros disponíveis estão geralmente no mercado de forma esporádica e pouco consistente. Ao fim ao cabo, ninguém vai querer prejudicar o seu serviço regular por causa de um serviço esporádico. E isso é uma limitação considerável para a qualidade potencial de um serviço de distribuição capilar «UBERizado».

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Mentira 3
Este serviço é completamente inovador

Não, não é. Os serviços de partilha de cargas e transportes já existem desde os anos 90. Hoje em dia existem dezenas de sites que são bolsas de cargas, essencialmente de longo curso, onde é possível colocar um pedido de transporte e obter um transportador num curto espaço de tempo. Na realidade a «economia de partilha» preconizada no modelo UBER já está bem estabelecida na indústria de transporte de longo curso há muito tempo, e os serviços melhor estabelecidos impuseram-se no mercado baseando-se num profundo conhecimento da indústria do transporte e logística e não numa tecnologia de web site ou app para telefone desenhada em função de um modelo de negócio que se queira impôr.

Num futuro próximo continuaremos seguramente a assistir ao surgimento de várias empresas a disseminar este modelo de negócio. Pode ser que em algumas indústrias seja uma boa opção, mas em muitas outras a «UBERização» do transporte capilar não trará vantagens tão evidentes.

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Filipe Carvalho é co-fundador e CEO da Wide Scope, empresa que desenvolve soluções de optimização em áreas como planeamento e sequenciamento de produção, logística e gestão de recursos humanos. 

(Texto originalmente publicado na edição n.º99 da Revista Eurotransporte)


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