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"É necessário mudar de paradigma e lutar contra a resistência"

12 dezembro 2022

José Manuel Viegas, Presidente do Conselho de Administração da TIS.pt em entrevista à EUROTRANSPORTE.

Fundador e atual presidente do Conselho de Administração da TIS.pt, José Manuel Viegas aceitou responder a algumas questões da EUROTRANSPORTE sobre as tendências e desafios da mobilidade sustentável.

Com um olhar acutilante sobre a forma como vivenciamos a mobilidade, José Manuel Viegas não hesita em incitar à reflexão nas razões do fracasso das políticaspúblicas das últimas décadas neste domínio e garante que mais do que investimento financeiro é preciso coragem política para mudar de paradigma e conseguir colocar no mercado uma oferta multimodal variada, reduzindo a utilização do automóvel nas cidades.

Mobilidade inteligente e sustentável: Tendência e desafios, o que nos falta?
A mobilidade sustentável deve procurar satisfazer quatro objetivos: o acesso universal e equitativo (a equipamentos coletivos, oportunidades de trabalho, de interação social e de lazer), a segurança, a eficiência e a ausência de impactos ambientais negativos, e esses objetivos devem ser considerados de idêntica importância, o que significa que não devem ser aceites avanços num se isso provocar recuo(s) noutro(s). A mobilidade sustentável, atendendo a estes quatro objetivos, é certamente melhor para as pessoas e para a sociedade em geral, tendo ainda um papel decisivo para a qualidade de vida em geral. Neste período histórico a questão das emissões de gases com efeito de estufa ganhou uma prioridade inquestionável em todo o mundo, sendo muito visíveis as iniciativas no sentido da descarbonização da mobilidade. Mas em grande parte das cidades de média e grande dimensão, a questão da (falta de) eficiência, associada aos congestionamentos sistemáticos provocados pelo excesso de automóveis, é muito notória, com queixas frequentes de muitos cidadãos. Infelizmente são objeto de queixas menos frequentes os problemas de insegurança (porque estamos habituados e achamos que as colisões graves “só acontecem aos outros”) e de iniquidade no acesso (porque os que dela sofrem estão habituados a isso e também sofrem de muito pouco acesso aos instrumentos de comunicação pública. Mas cabe-nos a nós, que trabalhamos sobre estas questões e temos acesso a esses instrumentos, chamar a atenção para esse problema de iniquidade no acesso físico aos destinos de interesse de cada um – que é um dos principais fatores de exclusão social nos tempos atuais – e tentar incluir melhorias nesse objetivo mesmo quando preparamos intervenções para acudir a outros objetivos.

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Quais as principais mudanças necessárias para conseguir reduzir o uso do automóvel particular e evoluir no sentido da mobilidade sustentável?
Para além da questão da descarbonização dos transportes – cujo caminho está no essencial definido para os transportes terrestres de pequeno e médio curso, com a eletrificação dos veículos de todos os modos motorizados – as escolhas modais têm um impacto muito forte na eficiência no uso do espaço público. Ao longo das últimas décadas tem vindo a ocorrer em Portugal um crescimento sustentado da parte de mercado correspondente ao uso do automóvel individual, apesar dos fortes investimentos em infraestruturas e em veículos do transporte coletivo – sobretudo nos modos ferroviários – e das muito regulares campanhas de informação em promoção do seu uso, para além da integração tarifária (com forte benefício para muitos cidadãos residentes em áreas suburbanas) obtida com o PART em 2019.
Se tanta gente prefere usar o automóvel individual – que ainda por cima lhes custa mais dinheiro – devemos reconhecer que isso será porque essa é a opção que os serve melhor, e daí concluir que não vamos conseguir inverter a situação deitando mais dinheiro para cima do problema, limitando-nos a investir mais nos sistemas tradicionais de transportes coletivos.

Entre os fatores explicativos dessa realidade há dois principais: um, exterior ao setor dos transportes, que é o modelo de ocupação do território que vimos praticando no essencial desde os anos 80; e outro que é a vantagem competitiva do automóvel sobre os outros modos no que respeita à flexibilidade e fiabilidade (garantia de serviço no local e no momento em que preciso de transporte) que proporciona ao seu condutor.

São conhecidas as consequências negativas a nível social da conjugação desses milhares de decisões individuais, mas cada uma dessas decisões individuais é correta e eficiente na perspetiva de quem decide. Por isso, se quisermos mudar a repartição modal, temos que tomar decisões:
a) No domínio do urbanismo, com impacto a médio e longo prazo, favorecendo as ocupações do território com maior densidade e diversidade funcional, e sempre que possível nas proximidades das estações de transportes de transportes coletivos de alta capacidade;
b) No domínio dos transportes, potenciando um conjunto de soluções alternativas ao automóvel individual e que, no seu conjunto e usando cada uma delas em função das circunstâncias de cada deslocação, possam constituir uma alternativa suficientemente atraente para que uma parte significativa dos automobilistas cativos do uso do automóvel possa pelo menos aceitar experimentar esse “pacote” de alternativas.

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Esta noção de “pacote” é essencial, já que nenhum outro modo de transporte (à exceção da marcha a pé, mas só para distâncias curtas, e desde que haja condições agradáveis de caminhabilidade) consegue competir por si só com o automóvel nos critérios de flexibilidade e fiabilidade.

Para algumas pessoas que tenham os seus locais de residência e de trabalho sobre a mesma linha de transporte coletivo em sito próprio, esse modo serve-os bem nas deslocações casa-trabalho, mas basta introduzir a necessidade de ir levar um filho a uma atividade cultural ou desportiva a meio da tarde para um local fora dessa linha do transporte coletivo, e o automóvel emerge rapidamente como o modo preferido para satisfazer toda a agenda de mobilidade dessas pessoas.

Nesse sentido, acredita que é necessário investir mais na ferrovia, enquanto modo não poluente e de grande capacidade? Ou, pelo contrário, apostar mais em modos partilhados?
Construir mais linhas ferroviárias (ou melhorar fortemente algumas de muito fraco desempenho) faz sentido nos corredores em que se estime haver a densidade de procura suficiente para justificar esse modo de alta capacidade, mas mesmo nesses casos temos de ter a perceção de que as pessoas que tenham a sua residência ao longo dessa linha, mas destinos longe dela e implicando mais que um transbordo, dificilmente serão clientes da ferrovia.

Por isso, o verdadeiro desafio não é investir mais no modo A ou B dos transportes coletivos, mas sim conseguir colocar no mercado uma oferta multimodal variada – com os transportes coletivos tradicionais e com novos modos – que possa ser usada com total flexibilidade por cada cidadão, escolhendo para cada deslocação o modo alternativo ao automóvel que lhe seja mais conveniente. Só através dessa diversidade será possível competir com o automóvel individual e levar a que alguns automobilistas experimentem as novas soluções e uma boa parte deles decida que com essa liberdade de escolha de modo – e com o que isso lhes permite de flexibilidade e fiabilidade na sua mobilidade – até é melhor do que andar com o seu carro para todo o lado, pelo menos porque é mais barato. Uma ocupação de território dispersa será mais bem servida por modos de baixa capacidade, quer em alimentação de eixos de alta capacidade (se estiverem próximos dos locais de início ou fim das viagens) quer em serviço direto a destino.

Em ambos os casos podem ter um papel muito importante as bicicletas elétricas – individuais ou partilhadas – desde que dispondo de condições seguras de circulação e de estacionamento, e os modos partilhados e a pedido, capazes de atender as ligações de “last-mile” em ligação às estações dos modos de maior capacidade e as procuras de menor intensidade e por isso não atendíveis pelos modos tradicionais.

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Ambos os modos podem ser muito eficientes, quer no custo quer na ocupação do espaço público por passageiro transportado. Isto exige uma mudança radical da orientação das políticas de mobilidade que, no essencial, ainda têm uma orientação de oferecer mais transporte coletivo e a menor preço para os cidadãos, sem ter havido a perceção de que para cerca de dois terços da população, esse produto não é apelativo. Mais do mesmo (tipo de produto), ainda que a menor preço, não vai ter sucesso, é preciso apresentar aos cidadãos uma nova proposta de valor que os seduza para a experimentar e de seguida os convença de que a experiência valeu a pena porque os conduziu a uma escolha melhor.
E, além de conceber e apresentar essa nova proposta de valor, temos de permitir aos cidadãos experimentá-la sem ter de optar “à cabeça” por comprar passes mensais… Há formas inteligentes, adotadas em vários outros setores, de convidar à experimentação de forma sedutora. Se formos capazes de ter a lucidez e a coragem política de enveredar por este novo caminho teremos uma mobilidade muito mais sustentável porque o volume de tráfego será menor e ainda porque, havendo muito maior quantidade de deslocações asseguradas por veículos partilhados (nas suas várias modalidades) e em oferta profissional, a descarbonização ocorrerá de forma muito mais célere. E temos de ter a noção de que adotar esse novo paradigma implica mudanças na regulamentação, na afetação do espaço público, e possivelmente na repartição dos fundos públicos.

E podem as tecnologias digitais dar um contributo importante para essas mudanças? Quais as principais recomendações para o desenvolvimento das aplicações neste setor?
Este novo paradigma de mobilidade, que envolve uma utilização muito mais intensa de modos partilhados, com tempos de espera reduzidos, só será eficiente e, portanto, apelativo da sua utilização pelos cidadãos, se for baseado em sistemas digitais de elevado desempenho, na facilidade de experimentação e de utilização pelos cidadãos, na fiabilidade da sua operação, e na qualidade das soluções que propõe a cada cidadão.

Mas não devemos esquecer que estes sistemas digitais são o instrumento ao serviço da mobilidade inteligente, e que por isso tem de ser os desígnios no domínio da mobilidade a especificar o que é que se pretende desses sistemas digitais, e não estes a moldarem as condições em que se vai realizar a mobilidade de passageiros ou mercadorias. Os produtos e serviços do lado digital têm de ser concebidos, desenvolvidos e colocados no mercado tendo em vista servir bem o cliente, cidadão móvel, neste enquadramento de mobilidade sustentável.

Ainda no domínio dos sistemas digitais e do seu impacto na mobilidade devemos também contar num horizonte não muito distante com a introdução de veículos rodoviários sem condutor – de início em contextos bem demarcados – que permitirão, após alguns anos de amortização das tecnologias, uma redução significativa do custo dos transportes organizados numa base profissional. O investimento mais importante a fazer no tempo mais próximo nem sequer é de recursos financeiros significativos, mas sim o de refletir nas razões do fracasso das políticas públicas das últimas décadas neste domínio, daí deduzindo que é necessário mudar de paradigma e, de seguida, estar preparado para lutar contra a resistência dos muitos incumbentes. 

 *Publicado originalmente na edição 130 da Revista Eurotransporte.

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